O Perfume de Olívia

sábado, 25 de junho de 2016

Hoje parei pra comprar cigarros.
Na verdade, cigarro. No singular.
Comprei um só, avulso, numa barraquinha de cachorro-quente...
Às vezes sinto vontade de fumar, mas fica por isso mesmo. Acho que, até hoje, nunca cheguei a comprar um maço.
Eu não fumo. Pelo menos há alguns anos. Bem, preciso admitir que traguei algumas poucas vezes nas últimas semanas, mas sequer somei um cigarro.
Poucas coisas me despertam essa vontade de fumar. A principal é uma bela mulher. Não qualquer uma, tenho quase certeza. Apenas ela.
Não só o modo como segura o cigarro, nem a maneira como o leva a boca. Cada gesto e suas conversas, e os motivos pelos quais a vi fumar. Na maioria das vezes ela estava nua, então isso pode nublar minha mente com memórias diferentes, mas tenho certeza que todo o ritual era incrível. A maneira como se inclinava à janela, de costas para mim, de vez em quando olhando para trás e apenas sorrindo, fosse aquele riso com um canto da boca ou aquele completo onde eu podia ver seus dentes perfeitos e aquela deliciosa expressão de toda a sua malícia... Ou quando nem se importava em ir até a janela, e fumava deitada ao meu lado, nunca se incomodando que eu ficasse olhando-a. E o fato de nunca se esconder. Nunca cobrir o corpo com um lençol ou toalha, mesmo quando ia até a janela. Sua irreverência era parte daquela cena. Podia-se pintar um quadro dela fazendo aquilo, e jamais alguém poderia dizer que era vulgar. Não com ela. Havia uma sensualidade fatal em seu corpo, e não eram suas curvas. Algo dela. Apenas dela. O cigarro poderia ou não fazer parte daquilo e o resultado seria o mesmo. Era sua aura, seu eu. Era ela. Agindo e sendo livre dentro de um quarto. Ela expressando-se. Já a vi agir do mesmo modo falando ao celular. Nua ou vestida. Assim como a vi fumar nua e vestida, e toda aquela atuação natural estava lá também. É simplesmente algo implícito. Inerente, embora eu não quisesse usar essa palavra.
Mas tem mais. Ah, como tem mais...
Se visualmente essa cena foi marcante, então houve algo que ficou impresso na memória de outros sentidos. Toda a fumaça dos cigarros e todo o cheiro característico que vem junto eram simplesmente sobrepujados por seu indescritível perfume. Até hoje não consigo dizer qual era. E eu conheço perfumes. Mas realmente não importa. O modo como sua pele reagia à química produzia o cheiro mais excitante que já senti. Seu cheiro após o banho ou a qualquer momento que eu tenha presenciado. Mesmo quando havia cheiro de cigarro, nela ou em suas roupas, ou em seus cabelos, o perfume estava lá, lutando e vencendo. Se fazendo perceber. O cheiro dela. Seu corpo. Sua pele...
Agora estou aqui olhando para um pedaço de filtro e tabaco enrolados em papel e imaginando tudo aquilo. Sentindo o cheiro do cigarro ainda apagado e lembrando quantas vezes a vi riscando seu velho isqueiro Imco para misturar fumaça à sua fragrância, de uma maneira singular. Algumas roupas minhas, mesmo lavadas, ainda têm seu cheiro pessoal e eu ainda encontro fios de seus cabelos no meu carro.
Eu acendo o cigarro. Uso um fósforo. Prefiro assim. Fósforos têm estilo, independente do tipo. Um isqueiro apenas se impõe se for um Zippo, ou assemelhado. O cheiro do cigarro recém-aceso se espalha e invade meu nariz, provocando meu olfato. Uma pena durar tão pouco. Logo se esvai e fica apenas a fumaça.
Mas eu sinto algo mais...
Mergulho em memórias e o passado é como se fosse o presente. O perfume. Sei que o cheiro não está lá, mas eu o sinto. O olfato aguça ainda mais toda aquela enxurrada de cenas vividas com ela. Como eu amo a memória olfativa. A capacidade do cérebro de imediatamente relacionar um determinado cheiro e jogar na imagem mental uma memória associada a ele. É uma ligação direta: olfato e emoções. Isso me fascina.
Absorvo a fumaça e é como uma droga me causando torpor. Sou capaz de reviver os momentos de nossos encontros com a precisão de detalhes. A silhueta nua inclinada à janela, suas roupas jogadas às pressas em cima da poltrona de vime, os celulares apitando para ninguém, o Sol de entardecer contra as persianas da varanda... A cena invade minha cabeça e eu me perco e me afogo nas nossas lembranças.
Termino o cigarro. A cena se dissipa devagar com a fumaça e o cheiro. Preciso de mais. Vou até o bar na esquina da rua de baixo e me sento ao balcão. As imagens parecem lentas e distorcidas, como seu eu estivesse bêbado. Peço um whisky, duplo, sem gelo e falo pro garçom esperar. Engulo a dose dupla de uma das duas maneiras que considero aceitáveis. Agora uma dose simples e duas pedras de gelo: a segunda maneira aceitável. Essa é lenta. Três pedras de gelo deixam o whisky gelado demais para apreciá-lo. Uma pedra não o gela nem dilui o álcool o suficiente. Duas pedras. Temperatura correta e diluição do sabor e do álcool perfeitas para saborear a bebida...
Onde eu estava?
Ela. Sim, ela. Ela e seu cheiro impossível misturado com cigarro. Seus cabelos castanhos e jeito ímpar. Sua pele alva e seus palavrões. Sua voz de locução e seus cigarros.
Apanho meu copo e peço ao caixa um cigarro avulso. Vou até a porta tateando os bolsos da jaqueta e da calça. Esqueci os fósforos.
Merda.
Volto ao caixa e apanho o isqueiro de plástico pendurado em barbante. Suspiro. Acendo o cigarro e ganho a rua.
Que merda.
Sento no banco sujo de madeira ao lado da placa de conversão proibida. Não sei dizer com que me pareço neste instante. Revivo o pretérito perfeito da tarde anterior dentro da neblina do tabaco. Preciso descobrir qual o perfume dela. É impossível que eu não o conheça!
Termino o cigarro. Entro no bar e deixo o copo vazio no balcão. Pago o caixa e saio...
Alguma coisa me para na calçada. Por instinto volto ao caixa e compro um maço de cigarros.
Droga, Olívia. O que você fez comigo? Eu devo ter falado e não pensado isso, pois o caixa me inquiriu alguma coisa. Sorrio e agradeço e saio.
Atravesso a rua e refaço o caminho para o apartamento. Preciso dos meus fósforos.
Subo os três lances de escada e abro a porta verde-limão.
Apanho o maço no bolso. Ele me encara com superioridade desmedida, como um monstro prestes a engolir um cachorro. Caio em cima dos meus joelhos e cedo ao choro que vinha segurando desde cedo.
Droga, Olívia! O que você fez comigo?
Preciso vê-la de novo. Quero seu cheiro e seu corpo, sua nudez e sua cena outra vez.
Mas hoje, ao acordar, a poltrona de vime estava vazia. Só o meu celular despertava. O Sol não tocava a varanda. Nenhuma silhueta fumava à janela.

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