A Artífice-Criadora

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019


A Artífice

— Ainda não está perfeito... — resmungou a artífice.
— De nada vai adiantar ficar martelando a mesma coisa. O conceito está imperfeito. Sua ideia, por melhor que seja, é imperfeita.
As palavras do mestre sempre espetavam um pouco. Aprender era meio doído.
— Não entendo. Eu revisei tudo antes de começar. O conceito parece ótimo pra mim e a ideia está bem trabalhada. Onde estou errando?
O mestre então fechou o livro e olhou para a obra enquanto pensava na resposta que daria. Aquele era sua melhor aluna, sem dúvida alguma. Mas tinha ideias truncadas, por vezes inexecutáveis. E, desta vez, parecia finalmente ter chegado a um impasse. Ou aceitava a imperfeição e abraçava a execução como estava, ou voltava para a etapa de concepção.
Começou então a avaliar os detalhes da obra à sua frente
— Vamos ver...
Naquele ponto do aprendizado, o aluno já era considerado artífice, e deveria ser capaz de idealizar algo e construir do início ao fim num único fluxo de pensamento. Os movimentos treinados precisavam constituir a obra de uma única vez, levasse o tempo que fosse preciso. Só assim se poderia ter ideia da real capacidade do artífice. E era esse o objetivo do teste.
— Hmm, veja aqui. Isto está de acordo com seu projeto? Parece ser só um buraco vazio, sem função.
— Sim, está de acordo, mas não é vazio. Tem uma função. Do outro lado também. São iguais.
— É que parece tão antiquado... Mas bem, a ideia é sua. E essas diversas saliências? Todas fazem parte da concepção?
— Sim. Está tudo nas minhas anotações.
O mestre fez uma careta, deixando em dúvida se dava sua aprovação.
— Deixe-me ver seu projeto escrito.
A aluna apanhou o calhamaço de projeções e entregou ao professor.
— Onde você colocou os detalhes lógicos de compreensão?
— Estão a partir da projeção seiscentos e quarenta e três.
— Enquanto eu leio, me fale um pouco sobre a sua ideia bruta.
— O que pretendo com esse projeto é provar que a inteligência é possível em níveis inferiores. Tudo o que nós somos está extirpado, visando eliminar qualquer possível impressão do conceitual do “nós”. Assim sendo, a obra em si deverá aprender do início a...
— Certo, já entendi — interrompeu o mestre — E as correntes de coerência estão...?
— Projeção dois mil e trinta e nove. E os fluxos ideológicos estão na sequência.
Era um projeto ousado. Enorme. O maior projeto que já havia passado por aquela instituição.
— Veja, eu organizei todos os cabides neuroflexos em ordem de crescimento para facilitar as respostas gesticulares primais.
— Sim, muito inteligente.
Um projeto assim levaria um tempo considerável para ser revisado e posto à prova pela comissão superior.
— Você conceituou o tempo?
— Sim, eu precisei. O passar do tempo estava se mostrando um problema colateral que impedia a execução da ideia. Conceituá-lo foi a forma que encontrei para contornar a divergência metafísica que iria se impor irremediavelmente no futuro.
— Você tem ciência de que, apenas isso, seria suficiente para uma aprovação. Por que eu li aqui e a execução não seria difícil pra você e sua aprovação seria certa. Eu não entendo porquê você precisou deixar tudo tão mais complexo.
Silêncio. A jovem artífice estava muda, talvez contemplando o elogio velado, talvez arrependido de seu enorme projeto. Mas...
— Porque apenas isso não era suficiente, professor! — um grito, talvez preso há muito tempo — Eu vejo os trabalhos dos meus companheiros e penso que eles poderiam fazer tão mais que isso! Todos aqui poderiam ser muito mais, alcançar muito mais. Isso me corrói...
Um sorriso satisfeito tomou a grande sala.
— Continue trabalhando. Eu vou levar seu projeto à comissão superior e interceder por você. De acordo com seu conceito temporal, você ainda deve demorar mais... Uns dois... como é mesmo? “Meses” para concluir?
— Acredito que sim.
— Até lá a comissão terá lido e entendido seu projeto e você poderá apresentá-lo no Púlpito Colimar. E é o que eu disse antes, seu projeto é imperfeito por natureza. Precisa ser. Do contrário, não seria possível. Você é uma excelente artífice, vai conseguir.

§

Dois meses após, no dia da avaliação pela comissão superior. A aluna estava de pé, falando no Púlpito Colimar e a comissão superior, sempre composta por Professores e Criadores, ouvia atentamente à longa explicação do maior projeto que julgariam. A artífice falava incessantemente, emanando de si um brilho que apenas a paixão pode conferir.
Quando concluiu todos os aspectos de seu projeto, declarou que havia encerrado.
— Garota — começou a líder da comissão — é um projeto incrível. Há muito material aqui. Julgo ser suficiente para dez trabalhos no tamanho “padrão”. Espero que saiba que será julgada da mesma forma que outros trabalhos o são. Agora quero convidar o primeiro professor à iniciar a indagação.
— Obrigado professora. Quero parabenizar à aluna pela execução de tamanho ousado projeto. Acrescento que ele se provou valoroso, mas ainda há alguns conceitos que nos deixam com dúvidas... O que seria esse que você chama de “Primus Natalício”?
— Seria o conceito inicial. Por onde tudo iria começar, na verdade. E não seria de fato conhecido por outros que não lessem meu projeto. É apenas um meio pelo qual tudo nasceria.
— E daria origem a tudo? Simplesmente existindo, faria tudo existir?
— Perfeitamente. Segundo meus cálculos o próprio comportamento da matéria, é perfeitamente possível.
— Matéria essa, que você vai erigir?
— Exato.
— Muito bem. O próximo professor pode dar seguimento...
— Vou direto para a minha pergunta. Que seria esse “intrafluxo gravitacional”? Não entendi nas projeções se há uma definição ou não.
— Acho que pode ser descrito como um objetivo. Este será conhecido por todos, mas misterioso e cheio de questões relativas. Desvendá-lo, eu prevejo, será um objetivo, sim. Uma grande busca. E aí sim ele terá uma definição.
— Você tem ciência de que há inúmeras falhas no seu projeto?
— Eminência, se me permite interceder nesta questão... — o professor protegia sua aluna — Todas as quase três mil projeções do trabalho de minha aluna são fruto de uma ideia conceitual imperfeita per se. E é como deve ser. Tiradas as imperfeições, sejam elas nas equações matemáticas ou nas fórmulas químicas, o trabalho se perde e rapidamente se torna desinteressante. Na minha opinião, são as imperfeições que o tornam um trabalho tão admirável.
— Muito bem — a líder da comissão voltava a falar — se o professor e a aluna puderem deixar o Púlpito por uns instantes, a comissão irá avaliar todo o projeto, incluindo a parte prática, e chegaremos a um resultado em instantes.
Professor e aluna então saem do Púlpito e, no lado de fora, ficam em silêncio, cada um remoendo seus pensamentos, achando que isso ou aquilo poderia ser melhorado.
— Acho que poderia ter feito diferente nas projeções de mil e cinquenta e seis até mil trezentos e noventa e oito.
— As projeções que envolvem o estereótipo isoáxico estavam excelentes. Pare com isso, você só vai se castigar sem motivo. Já estão julgando tudo. Não há mais nada que você possa fazer. Você explicou bem a parte pratica e a apresentação do trabalho foi ótima.
— “Ótima” não é perfeita...
Em resposta, o professor suspirou. Sabia que aquilo era apenas medo. O trabalho era primoroso. Por outro lado, a comissão realmente só aprovava trabalhos impecáveis. Era extremamente importante o entendimento de que as imperfeições estavam na raiz do trabalho.
A porta então se abriu novamente. Um sinal de que deveriam voltar. Entraram. O professor sentou-se na cadeira mais perto da porta e a artífice foi novamente ao Púlpito.
— A comissão deliberou e decidiu, — a professora líder da comissão falou — baseados não apenas na leitura das projeções, o que levou semanas neste caso particular, mas também nas apresentações prática e oral do projeto, conceder à artífice pretendente o título de “Criador”.
A garota não conteve o choro e o professor foi abraçá-la. Os três integrantes da comissão superior aplaudiam. No abraço, o professor afastou os rostos para olhar a aluna nos olhos.
— Estou muito orgulhoso de ti! — disse o professor — Parabéns, Deus!


Um sentimento por vez.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Olá!
Já faz tempo!
Vamos tirar o pó.

Texto realizado como desafio para o Podcast Gente que Escreve. Os hosts do podcasts dão palavras ou elementos que precisam aparecer no texto. No caso, o texto em questão engloba 3 desafios: 1 - Iniciar o texto com a frase de diálogo: Puta que pariu, Marcelo! 2 - palavras: aquário, bala de prata, saudade. 3 - palavras: cabo USB, post it. Frase "quase três horas". Observação: troquei a palavra "post it" por "paçoca", como liberdade poética de uma piada interna no final do episódio que sugere esse desafio. Vamos lá!

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― Puta que pariu, Marcelo!
Já devia ser a quinta vez que ele enfiava a mão na boca para extrair um sentimento. Era algo normal, mas Carla já estava de saco cheio.
― Eu não sou “Marcelo”, droga! Você sabe disso...  ― ele respondeu ofegante, meio agachado, com uma mão apoiada num joelho e a outra limpando a boca ― E o que foi que eu fiz?
A outra olhou-o de cima. O passado querendo aflorar. Não era fácil para nenhum deles, claro. Talvez fosse pior para ele. Ninguém mais ali precisava vomitar um emaranhado de sensações, afinal. Apenas ele.
― Nada… ― ela preferiu a compreensão à raiva, assim como no passado. Olhou para o resto do grupo ― Vamos.
Voltaram a caminhar. Fazia quase três horas desde a saída do último abrigo. Um galpão. Abandonado, talvez, desde antes do mundo mudar. Vazio. A vegetação ao redor começando a tomar conta das paredes. Pararam e descansaram. Comeram. Conversaram um pouco, o máximo possível sem começar uma discussão. Quando os corpos sentiram-se menos abatidos e desgastados, partiram. Agora não encontravam nada. Nenhuma construção ou ser vivo. Era quase um bom sinal. Mas desolação total normalmente significava algum perigo por perto.
A estrada era corroída e esburacada, difícil de trilhar. Muitas vezes era mais fácil margeá-la pela vegetação, se não houvesse obstáculos demais. A estrada, porém, podia ser vantajosa ao oferecer pilhagem diversa em veículos esquecidos pelo tempo, como a caixa de paçoca encontrada na semana anterior. Mas também escondia emboscadas…
Andando à frente, Aquário ergueu uma mão, sinalizando para o grupo parar.
― O que foi?
Em resposta, ele virou meio corpo para trás pedindo silêncio com um dedo. Era um gesto ancestral e conhecido, mas ver Aquário fazendo aquilo era bem estranho. O dedo esticado em frente ao capacete azul parecia lutar contra o ato.
― Ele ouviu alguma coisa. ― Alguém sussurrou e foi repreendido com um tapa. Bala-de-Prata tinha um olhar severo e imitava o gesto de maneira agressiva.
Aquário levantou um pouco o capacete, apenas o suficiente para expor o que eram suas orelhas, revelando parte de sua nuca e rosto. Os sons do ambiente, invadiram seu cérebro e ele controlou a agonia, tentando filtrar tudo e separar o que desejava. Ouvia passos. Eram abafados e pequenos, caminhando sobre algo muito fino. Ele levou alguns segundos refinando o som e extraindo interferências, até localizar a fonte. Estavam na estrada naquele momento, passando entre dois containers caídos. Logo depois vinha um trecho mais livre, onde a velha rodovia ganhava mais uma faixa de trânsito e não havia veículos juntos, formando algo como uma clareira. Aquário caminhou até lá e o grupo o seguiu devagar. Ele estacou e recolocou o capacete. Precisava enxergar melhor. Levantou  apenas parte da viseira escura e a luz da tarde o incomodou. Permitiu acostumar-se por alguns segundos e então ajoelhou-se em frente à armadilha. Uma linha de pesca bem esticada de um lado a outro da estrada. Ele a enxergava vibrar no ritmo dos passos, agora nítidos e bem definidos em seus ouvidos, mesmo abafados pelo capacete. A vibração vinha de uma das margens da estrada. De onde ele estava, focou a visão apertando os olhos e pôde distinguir uma pequena aranha, caminhando sobre a linha.
Sua boca desenhou um sorriso, mas ninguém veria. Ele esticou um braço logo acima da armadilha para ajudar os outros a ter uma ideia da altura.
― Vocês vão passar por cima do meu braço, um por um. Não vamos ficar aqui pra ver o que essa merda de linha vai ativar. Pode ser só um alarme ou coisa bem pior. De qualquer maneira, não deve ser bom para nós.
Os outros obedeceram; passaram devagar, com cuidado para não fazer besteira. Não era hora de tropeçar ou escorregar.
Durante a tarde, após alguma horas, encontraram um corpo. Amarrado a um poste com metros de fios de rede e cabos USB emendados, fora claramente deixado ali por dois motivos: castigo para quem quer que tenha sido o infeliz amarrado, e aviso para quem quer que passasse por ali. Território perigoso. Saíram daquele caminho.
A noite os brindou com o frio, como sempre fazia. Tinham saído um pouco da estrada e estavam num desvio afastado, numa antiga praça de pedágio. Conseguiram usar blocos ancestrais de concreto dispostos em círculo para formar um tipo de cercado e ter um perímetro definido. Permitiram-se uma fogueira pequena. Era uma denúncia fácil de presença, mas Aquário não ouvia nada ameaçador num raio de alguns quilômetros.
Ao menos teriam comida quente e poderiam economizar as paçocas.
O frio aumentou na madrugada. Os turnos de vigia eram sempre três e deviam estar no segundo quando Carla ouviu o choro abafado. Procurou o som com os olhos, mas sabia que o encontraria em Marcelo. Não era difícil que tivesse pesadelos, ou que acordasse para vomitar alguma amargura.
― Desculpe por aquilo mais cedo. ― ela disse quase num sussurro ― Eu estou sempre meio nervosa com tudo isso e me irritei com você. Foi injusto. Me desculpa?
Não houve uma resposta direta. Ele se mexeu em seu espaço e tentou controlar o choro.
― Você tá legal? ― Nada além de soluços mal escondidos ― Marcelo?
A reação ao nome foi um espasmo contido e uma tentativa de resposta engolida pelo choro. Carla se levantou e andou até ele, preocupada.  Ela via suas costas, mas ele estava bastante encolhido em si mesmo. Contornou-o devagar tentando enxergar seu rosto. Não era tão incomum de acontecer. Marcelo vomitaria e aquilo iria passar. Colocaria para fora algum sentimento e ficaria melhor.
O rosto dele apareceu entre um soluço e outro quando a mulher chegou à sua frente. Ela tapou a boca com as duas mãos para conter o espanto e a surpresa. A pele parecia grudar-se nos ossos, os olhos estavam injetados e lavados de sangue, talvez todas as suas veias saltassem em proeminências esquisitas e seus músculos contraíam-se em dor. Estava banhado em um suor vermelho e sujo. As mãos desesperadas arranhando o peito, como se cavando um buraco onde pudessem entrar e tirar de lá algo que causasse muita dor.
Ela se abaixou para segurar as mãos dele.
― Marcelo! Para!
― Nã-não s-sou Ma-rce-lo! ― a agonia da identidade expressa nas palavras que ele repetia para ela todos os dias.
Carla sentiu os olhos se afogarem em lágrimas. Aquilo era difícil demais. Segurando as mãos dele, sentiu a aliança em seu dedo. Olhou para sua própria. Um passado inteiro resumido a algo que ninguém podia compreender. Uma realidade bruta de mudanças grandes demais. Ela suspirou e o olhou nos olhos.
― Quem é você? ― a resposta veio gaguejada, mas foi uma mera correção. Ele não era mais alguém. Era algo. Ela entendeu e não conseguiu conter o choro. Mas refez a pergunta. ― O quê é você?
― Saudade! ― em um único fôlego sofrido.
Marcelo se tornara os próprios sentimentos. Na maioria das vezes, um de cada vez, sempre com intensidades diferentes. Todos eram passageiros, podendo ir e vir. A diferença, no entanto, residia no fato de Marcelo não apenas sentir mas viver o sentimento. Se tornava a coisa por inteiro.
E, como qualquer sentimento que castiga, é preciso colocar para fora.
― Você precisa vomitar, Marcelo! ― Carla fazia seu melhor para conter a própria agonia de vê-lo daquele jeito.
Aquário apareceu e tomou as mãos do homem que já começava a se debater.
― Você precisa fazer ele vomitar, Carla. ― o capacete inexpressivo era uma grande ajuda.
Ela assentiu e segurou o rosto de seu marido com uma mão, forçando para abrir sua boca e enfiou a outra até sua garganta. Sentiu a primeira contração e alguma coisa lá dentro a tocou e se enrolou. Ela segurou entre os dedos e puxou, sentindo outra contração. Marcelo conseguiu se soltar e apoiar os joelhos e mãos no chão, enquanto todo seu corpo forçava para expulsar a saudade de dentro dele. Devagar e aos espasmos, vomitou filamentos de um líquido azul e brilhante que se uniam e enrolavam como em um novelo embaraçado de lã. Como já era esperado, a esfera flutuou e perdeu intensidade até tornar-se translúcida e desaparecer.
Carla o abraçou e ajudou Marcelo a se deitar. Ele adormeceu, exausto de si.
Os outros já tinham levantado e olhavam, tentando passar algum conforto com olhares expressivos.
― Ele está bem? ― Bala-de-Prata não tinha certeza se estava preocupada de verdade. Mas seus olhos arregalados e o tom da sua voz não mentiam.
― Acho que sim. ― Carla olhou bem para o rosto de Marcelo.
― Será que está sentindo alguma coisa? ― A pergunta não parecia correta ― Quero dizer… Será que ele é alguma coisa agora?
― Acho que sim, Bala-de-Prata. No momento, ele deve ser tudo o que sentimos quando colocamos para fora algo que está tentando nos matar. ― Carla afagava os cabelos suados dele ― Eu espero muito que ele seja alívio...

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Tirada de pó?
Isso precisa de uma faxina geral!
Mas, por enquanto, só o aspirador...

O Perfume de Olívia

sábado, 25 de junho de 2016

Hoje parei pra comprar cigarros.
Na verdade, cigarro. No singular.
Comprei um só, avulso, numa barraquinha de cachorro-quente...
Às vezes sinto vontade de fumar, mas fica por isso mesmo. Acho que, até hoje, nunca cheguei a comprar um maço.
Eu não fumo. Pelo menos há alguns anos. Bem, preciso admitir que traguei algumas poucas vezes nas últimas semanas, mas sequer somei um cigarro.
Poucas coisas me despertam essa vontade de fumar. A principal é uma bela mulher. Não qualquer uma, tenho quase certeza. Apenas ela.
Não só o modo como segura o cigarro, nem a maneira como o leva a boca. Cada gesto e suas conversas, e os motivos pelos quais a vi fumar. Na maioria das vezes ela estava nua, então isso pode nublar minha mente com memórias diferentes, mas tenho certeza que todo o ritual era incrível. A maneira como se inclinava à janela, de costas para mim, de vez em quando olhando para trás e apenas sorrindo, fosse aquele riso com um canto da boca ou aquele completo onde eu podia ver seus dentes perfeitos e aquela deliciosa expressão de toda a sua malícia... Ou quando nem se importava em ir até a janela, e fumava deitada ao meu lado, nunca se incomodando que eu ficasse olhando-a. E o fato de nunca se esconder. Nunca cobrir o corpo com um lençol ou toalha, mesmo quando ia até a janela. Sua irreverência era parte daquela cena. Podia-se pintar um quadro dela fazendo aquilo, e jamais alguém poderia dizer que era vulgar. Não com ela. Havia uma sensualidade fatal em seu corpo, e não eram suas curvas. Algo dela. Apenas dela. O cigarro poderia ou não fazer parte daquilo e o resultado seria o mesmo. Era sua aura, seu eu. Era ela. Agindo e sendo livre dentro de um quarto. Ela expressando-se. Já a vi agir do mesmo modo falando ao celular. Nua ou vestida. Assim como a vi fumar nua e vestida, e toda aquela atuação natural estava lá também. É simplesmente algo implícito. Inerente, embora eu não quisesse usar essa palavra.
Mas tem mais. Ah, como tem mais...
Se visualmente essa cena foi marcante, então houve algo que ficou impresso na memória de outros sentidos. Toda a fumaça dos cigarros e todo o cheiro característico que vem junto eram simplesmente sobrepujados por seu indescritível perfume. Até hoje não consigo dizer qual era. E eu conheço perfumes. Mas realmente não importa. O modo como sua pele reagia à química produzia o cheiro mais excitante que já senti. Seu cheiro após o banho ou a qualquer momento que eu tenha presenciado. Mesmo quando havia cheiro de cigarro, nela ou em suas roupas, ou em seus cabelos, o perfume estava lá, lutando e vencendo. Se fazendo perceber. O cheiro dela. Seu corpo. Sua pele...
Agora estou aqui olhando para um pedaço de filtro e tabaco enrolados em papel e imaginando tudo aquilo. Sentindo o cheiro do cigarro ainda apagado e lembrando quantas vezes a vi riscando seu velho isqueiro Imco para misturar fumaça à sua fragrância, de uma maneira singular. Algumas roupas minhas, mesmo lavadas, ainda têm seu cheiro pessoal e eu ainda encontro fios de seus cabelos no meu carro.
Eu acendo o cigarro. Uso um fósforo. Prefiro assim. Fósforos têm estilo, independente do tipo. Um isqueiro apenas se impõe se for um Zippo, ou assemelhado. O cheiro do cigarro recém-aceso se espalha e invade meu nariz, provocando meu olfato. Uma pena durar tão pouco. Logo se esvai e fica apenas a fumaça.
Mas eu sinto algo mais...
Mergulho em memórias e o passado é como se fosse o presente. O perfume. Sei que o cheiro não está lá, mas eu o sinto. O olfato aguça ainda mais toda aquela enxurrada de cenas vividas com ela. Como eu amo a memória olfativa. A capacidade do cérebro de imediatamente relacionar um determinado cheiro e jogar na imagem mental uma memória associada a ele. É uma ligação direta: olfato e emoções. Isso me fascina.
Absorvo a fumaça e é como uma droga me causando torpor. Sou capaz de reviver os momentos de nossos encontros com a precisão de detalhes. A silhueta nua inclinada à janela, suas roupas jogadas às pressas em cima da poltrona de vime, os celulares apitando para ninguém, o Sol de entardecer contra as persianas da varanda... A cena invade minha cabeça e eu me perco e me afogo nas nossas lembranças.
Termino o cigarro. A cena se dissipa devagar com a fumaça e o cheiro. Preciso de mais. Vou até o bar na esquina da rua de baixo e me sento ao balcão. As imagens parecem lentas e distorcidas, como seu eu estivesse bêbado. Peço um whisky, duplo, sem gelo e falo pro garçom esperar. Engulo a dose dupla de uma das duas maneiras que considero aceitáveis. Agora uma dose simples e duas pedras de gelo: a segunda maneira aceitável. Essa é lenta. Três pedras de gelo deixam o whisky gelado demais para apreciá-lo. Uma pedra não o gela nem dilui o álcool o suficiente. Duas pedras. Temperatura correta e diluição do sabor e do álcool perfeitas para saborear a bebida...
Onde eu estava?
Ela. Sim, ela. Ela e seu cheiro impossível misturado com cigarro. Seus cabelos castanhos e jeito ímpar. Sua pele alva e seus palavrões. Sua voz de locução e seus cigarros.
Apanho meu copo e peço ao caixa um cigarro avulso. Vou até a porta tateando os bolsos da jaqueta e da calça. Esqueci os fósforos.
Merda.
Volto ao caixa e apanho o isqueiro de plástico pendurado em barbante. Suspiro. Acendo o cigarro e ganho a rua.
Que merda.
Sento no banco sujo de madeira ao lado da placa de conversão proibida. Não sei dizer com que me pareço neste instante. Revivo o pretérito perfeito da tarde anterior dentro da neblina do tabaco. Preciso descobrir qual o perfume dela. É impossível que eu não o conheça!
Termino o cigarro. Entro no bar e deixo o copo vazio no balcão. Pago o caixa e saio...
Alguma coisa me para na calçada. Por instinto volto ao caixa e compro um maço de cigarros.
Droga, Olívia. O que você fez comigo? Eu devo ter falado e não pensado isso, pois o caixa me inquiriu alguma coisa. Sorrio e agradeço e saio.
Atravesso a rua e refaço o caminho para o apartamento. Preciso dos meus fósforos.
Subo os três lances de escada e abro a porta verde-limão.
Apanho o maço no bolso. Ele me encara com superioridade desmedida, como um monstro prestes a engolir um cachorro. Caio em cima dos meus joelhos e cedo ao choro que vinha segurando desde cedo.
Droga, Olívia! O que você fez comigo?
Preciso vê-la de novo. Quero seu cheiro e seu corpo, sua nudez e sua cena outra vez.
Mas hoje, ao acordar, a poltrona de vime estava vazia. Só o meu celular despertava. O Sol não tocava a varanda. Nenhuma silhueta fumava à janela.

Um pra cá, dois pra lá

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Te quero
Não posso, atrevo
Arrisco e espero
Desejo
Calor
Queimando
Somando ardor
Febre
Luta, resisto
Não consigo
Avanço
Tapa
Sorriso e um beijo
Outro, arde
O tapa, não o beijo
Mais um, molhado
O beijo, não o tapa
Luta, seguro, resiste
Empurra de volta
Me olha
Eu olho
Cruzados
Ainda quero
Não paro
Espero
Me puxa
Resisto
Difícil, me faço
Insiste, persisto
Boca, língua
Viro o rosto
Segura, duas mãos
As minhas livres
Parede, prendo
Violência medida
Controle
Descontrole
De repente, sua boca
Teu sabor, saboreio
Moleza, pernas
Ereto de novo
Sério, sorriso
Malícia
Foge, fácil
Vou atrás, me quer
Eu sei, finge
Alcanço, desejo, agora
Abraço, suas costas
Minhas mãos, sua barriga
As suas, minha nuca
Vira-se, amiga
Amante, amada, nunca
Solto, estranho, confuso
Calor, febre?
Já doença, contorço
O que é? Quero!
Empurra de novo, sofá
Caído, fico, olhando
Move-se lá e cá
Um lado, outro, repete
Cintura, não para
Solta o cabelo, ameaça
Pescoço se cobre
Mistério, os ombros
Esconde, mostra
Provoca, sabe como
As pernas, aponta
Me aponta, os pés
Levanto, só tento
Um pé, meu peito
Impede, empurra
Ainda sofá, faz que não
Morde o lábio, devagar
Sensual, os braços
Pra cima, revirando
Olhos, quase fecha-os
Cintura, não para, nunca
Abre o cinto, fivela
Puxa de um lado
Volta do outro
Chama minha atenção
Oura coisa, pescoço
E ombros, livres,
Lindos, aparecendo
Abro a boca, sinto, imagino
Sofro, me castiga
Cobre de novo, cabelo
Pra baixo, o cinto
Cadê? Surpresa!
Meu pescoço, ao redor
Preso, duas mãos
Me puxa, levanto
Quer. Agora?
Ainda não, dança
Mais, me leva, conduz
Onde? Cama, sobe
Não me deixa
Só ela, eu fico
Admiro, desejo
Quente, muito calor
Explodindo, quase
Quero subir, amo
Um pé, meu ombro
Percebeu, fez que não
Desce o pé, devagar
Meu tórax, brinca
Sobe, acaricia o rosto
Belisca, dói
Careta, desculpa
Sorrio, sorri
Joga beijo e o cabelo
De novo os ombros
De novo o pescoço
Te quero, não agüento
Esperta, empurra
Sempre percebe
Corre, subo, desce
Me joga a blusa, rápida
Sabe que atrasa
Quer tempo. Pra quê?
É o jogo, e é dela
Sinto o cheiro, mulher
Simples, sem perfume
Ela, em essência
Traduzida no olfato
Maravilhosa! Única!
Única! Só ela!
Feitiço, sucumbo
Deleite, cheiro bom
Muito, impossível
Ri, eu procuro
Não acho, esconde
Vejo a calça, sofá
Brinca, me ama
Não agüenta, ri mais
Encontro, assusta, corre
Vou atrás, claro
De repente, se joga
Em mim, derruba
Cuidado, não machuca
Procura, minha camisa
Arranca, um movimento
Troféu, levanta, foge
Agora não, seguro
Pé, puxo, firme
Caída, por cima
Luta, sempre,
Cede
Beijo, beijo, beijo
Finalmente
Pescoço e ombros
Meu troféu!

- Você nunca me deixa terminar!
- Como é que é?
- A dança. Você nunca me deixa terminar a dança!
- Ah bom! Não, não consigo... Mas algum dia deixo você terminar. Prometo.
- É?! – ela, feliz – Quando?
- Não sei. Quando comprarmos cordas pra me amarrar numa cadeira ou no pé da cama. – ela ri gostoso e depois olha sério, séria.
- Não, você tem de estar solto. Não seria a mesma coisa. Vamos contar com sua força de vontade.
- Acho que você tem razão. Sempre tem. Mas não sei se consigo resistir à toda sua sensualidade...

Olhos se encontram. Ela morde o lábio...

Não, eu não resisto.