A Artífice
— Ainda não está perfeito... — resmungou
a artífice.
— De nada vai adiantar ficar
martelando a mesma coisa. O conceito está
imperfeito. Sua ideia, por melhor que seja, é imperfeita.
As palavras do mestre sempre
espetavam um pouco. Aprender era meio doído.
— Não entendo. Eu revisei tudo
antes de começar. O conceito parece ótimo pra mim e a ideia está bem
trabalhada. Onde estou errando?
O mestre então fechou o livro e olhou
para a obra enquanto pensava na resposta que daria. Aquele era sua melhor aluna,
sem dúvida alguma. Mas tinha ideias truncadas, por vezes inexecutáveis. E,
desta vez, parecia finalmente ter chegado a um impasse. Ou aceitava a
imperfeição e abraçava a execução como estava, ou voltava para a etapa de
concepção.
Começou então a avaliar os detalhes
da obra à sua frente
— Vamos ver...
Naquele ponto do aprendizado, o
aluno já era considerado artífice, e deveria ser capaz de idealizar algo e
construir do início ao fim num único fluxo de pensamento. Os movimentos
treinados precisavam constituir a obra de uma única vez, levasse o tempo que
fosse preciso. Só assim se poderia ter ideia da real capacidade do artífice. E
era esse o objetivo do teste.
— Hmm, veja aqui. Isto está de
acordo com seu projeto? Parece ser só um buraco vazio, sem função.
— Sim, está de acordo, mas não é
vazio. Tem uma função. Do outro lado também. São iguais.
— É que parece tão antiquado...
Mas bem, a ideia é sua. E essas diversas saliências? Todas fazem parte da
concepção?
— Sim. Está tudo nas minhas
anotações.
O mestre fez uma careta, deixando
em dúvida se dava sua aprovação.
— Deixe-me ver seu projeto
escrito.
A aluna apanhou o calhamaço de
projeções e entregou ao professor.
— Onde você colocou os detalhes
lógicos de compreensão?
— Estão a partir da projeção seiscentos
e quarenta e três.
— Enquanto eu leio, me fale um
pouco sobre a sua ideia bruta.
— O que pretendo com esse projeto
é provar que a inteligência é possível em níveis inferiores. Tudo o que nós somos está extirpado, visando eliminar
qualquer possível impressão do conceitual do “nós”. Assim sendo, a obra em si deverá aprender do início a...
— Certo, já entendi — interrompeu
o mestre — E as correntes de coerência estão...?
— Projeção dois mil e trinta e nove.
E os fluxos ideológicos estão na sequência.
Era um projeto ousado. Enorme. O
maior projeto que já havia passado por aquela instituição.
— Veja, eu organizei todos os
cabides neuroflexos em ordem de crescimento para facilitar as respostas
gesticulares primais.
— Sim, muito inteligente.
Um projeto assim levaria um tempo
considerável para ser revisado e posto à prova pela comissão superior.
— Você conceituou o tempo?
— Sim, eu precisei. O passar do tempo estava se mostrando um problema colateral
que impedia a execução da ideia. Conceituá-lo foi a forma que encontrei para
contornar a divergência metafísica que iria se impor irremediavelmente no
futuro.
— Você tem ciência de que, apenas
isso, seria suficiente para uma aprovação. Por que eu li aqui e a execução não
seria difícil pra você e sua aprovação seria certa. Eu não entendo porquê você precisou
deixar tudo tão mais complexo.
Silêncio. A jovem artífice estava
muda, talvez contemplando o elogio velado, talvez arrependido de seu enorme
projeto. Mas...
— Porque apenas isso não era
suficiente, professor! — um grito, talvez preso há muito tempo — Eu vejo os
trabalhos dos meus companheiros e penso que eles poderiam fazer tão mais que
isso! Todos aqui poderiam ser muito mais, alcançar muito mais. Isso me
corrói...
Um sorriso satisfeito tomou a grande
sala.
— Continue trabalhando. Eu vou
levar seu projeto à comissão superior e interceder por você. De acordo com seu
conceito temporal, você ainda deve demorar mais... Uns dois... como é mesmo? “Meses” para concluir?
— Acredito que sim.
— Até lá a comissão terá lido e
entendido seu projeto e você poderá apresentá-lo no Púlpito Colimar. E é o que
eu disse antes, seu projeto é
imperfeito por natureza. Precisa ser.
Do contrário, não seria possível. Você é uma excelente artífice, vai conseguir.
§
Dois meses após, no dia da
avaliação pela comissão superior. A aluna estava de pé, falando no Púlpito
Colimar e a comissão superior, sempre composta por Professores e Criadores,
ouvia atentamente à longa explicação do maior projeto que julgariam. A artífice
falava incessantemente, emanando de si um brilho que apenas a paixão pode conferir.
Quando concluiu todos os aspectos
de seu projeto, declarou que havia encerrado.
— Garota — começou a líder da
comissão — é um projeto incrível. Há muito material aqui. Julgo ser suficiente
para dez trabalhos no tamanho “padrão”. Espero que saiba que será julgada da
mesma forma que outros trabalhos o são. Agora quero convidar o primeiro professor à
iniciar a indagação.
— Obrigado professora. Quero
parabenizar à aluna pela execução de tamanho ousado projeto. Acrescento que ele se
provou valoroso, mas ainda há alguns conceitos que nos deixam com dúvidas... O
que seria esse que você chama de “Primus Natalício”?
— Seria o conceito inicial. Por
onde tudo iria começar, na verdade. E não seria de fato conhecido por outros
que não lessem meu projeto. É apenas um meio pelo qual tudo nasceria.
— E daria origem a tudo?
Simplesmente existindo, faria tudo existir?
— Perfeitamente. Segundo meus cálculos
o próprio comportamento da matéria, é perfeitamente possível.
— Matéria essa, que você vai
erigir?
— Exato.
— Muito bem. O próximo professor
pode dar seguimento...
— Vou direto para a minha
pergunta. Que seria esse “intrafluxo gravitacional”? Não entendi nas projeções
se há uma definição ou não.
— Acho que pode ser descrito como
um objetivo. Este será conhecido por todos, mas misterioso e cheio de questões
relativas. Desvendá-lo, eu prevejo, será um objetivo, sim. Uma grande busca. E
aí sim ele terá uma definição.
— Você tem ciência de que há
inúmeras falhas no seu projeto?
— Eminência, se me permite
interceder nesta questão... — o professor protegia sua aluna — Todas as quase
três mil projeções do trabalho de minha aluna são fruto de uma ideia conceitual
imperfeita per se. E é como deve ser.
Tiradas as imperfeições, sejam elas nas equações matemáticas ou nas fórmulas
químicas, o trabalho se perde e rapidamente se torna desinteressante. Na minha
opinião, são as imperfeições que o tornam um trabalho tão admirável.
— Muito bem — a líder da comissão
voltava a falar — se o professor e a aluna puderem deixar o Púlpito por uns
instantes, a comissão irá avaliar todo o projeto, incluindo a parte prática, e chegaremos
a um resultado em instantes.
Professor e aluna então saem do Púlpito
e, no lado de fora, ficam em silêncio, cada um remoendo seus pensamentos,
achando que isso ou aquilo poderia ser melhorado.
— Acho que poderia ter feito
diferente nas projeções de mil e cinquenta e seis até mil trezentos e noventa e
oito.
— As projeções que envolvem o
estereótipo isoáxico estavam excelentes. Pare com isso, você só vai se castigar
sem motivo. Já estão julgando tudo. Não há mais nada que você possa fazer. Você
explicou bem a parte pratica e a apresentação do trabalho foi ótima.
— “Ótima” não é perfeita...
Em resposta, o professor
suspirou. Sabia que aquilo era apenas medo. O trabalho era primoroso. Por outro
lado, a comissão realmente só aprovava trabalhos impecáveis. Era extremamente
importante o entendimento de que as imperfeições estavam na raiz do trabalho.
A porta então se abriu novamente.
Um sinal de que deveriam voltar. Entraram. O professor sentou-se na cadeira
mais perto da porta e a artífice foi novamente ao Púlpito.
— A comissão deliberou e decidiu,
— a professora líder da comissão falou — baseados não apenas na leitura das
projeções, o que levou semanas neste caso particular, mas também nas
apresentações prática e oral do projeto, conceder à artífice pretendente o
título de “Criador”.
A garota não conteve o choro e o
professor foi abraçá-la. Os três integrantes da comissão superior aplaudiam. No
abraço, o professor afastou os rostos para olhar a aluna nos olhos.
— Estou muito orgulhoso de ti! — disse o professor — Parabéns,
Deus!